A sensibilidade na escolha de novos escritórios e a atenção à acessibilidade e sustentabilidade por si só colocam as últimas edições da CASACOR na rota dos eventos de arquitetura que deveriam ser acompanhados com atenção. No entanto, o tema deste ano “Corpo & Morada” dá um passo além, e indica como o evento tem se mantido atento aos temas emergentes e instigantes da profissão.
Acertadamente, esta edição pretende discutir de que maneiras nosso corpo – espécie de morada primeira – é afetado e afeta o espaço que o circunda, construindo sua própria materialidade. Morar é sempre, antes de mais nada, habitar a si mesmo. Uma pessoa que não está à vontade na própria pele pode dormir em mil camas que vai permanecer um estranho a si. Por isso, de alguma maneira, nossa casa é não só a tradução de quem somos, mas a possibilidade mesma de construirmos esse sujeito chamado eu.
Acertam os espaços que compreenderam essa dimensão fundamental da existência e abrem mão de assepsias minimais ou do ideal em detrimento do real. O dia a dia aparece com força na profusão de memorabílias e, mais do que nos anos anteriores, resolve se impor como realidade ocupada, vida vivida. A casa conceito dá espaço à casa na qual me reconheço. É o caso da Casa Terroir, do Studio Schier, espécie de “manifesto anti-racionalista”, no qual prevalece a lógica do acúmulo da memória nos objetos. Da mesma forma, Marcelo Salum retorna afiado na sua Morada do Samba, trazendo um tropicalismo de raízes africanas para seus três ambientes.
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Conheça ambientes de outras edições da CASACORCom um percurso mais fácil de percorrer que em 2022, os 11.000m² de área construída reimaginam o Conjunto Nacional, trazendo a arte como um elemento central na operação dos 73 ambientes do evento, como é o caso da eletrizante instalação Percursus do Studio Guilherme Torres, e também da Galeria Origami, de Gabriel de Lucca e curadoria de Cézar Prestes.
Os tons terrosos seguem em alta, agora com maior saturação, seja no sofisticado espaço Loft Celmar dos veteranos Très Arquitetura, ou na Casa LG de BC Arquitetos. Os espaços paisagísticos aparecem em profusão, e vão desde o jardim mineral Origens Portinari de Hanazaki, até o ousado caminho selvagem pé-na-terra proposto por Cardim Arquitetura Paisagística no Banho de Floresta (que deu bastante trabalho à equipe de limpeza, já que a terra era trazida pelos sapatos para dentro). Por fim, chamou a atenção o espaço Ciclos Deca de Sig Bergamin, que celebra os 30 anos de parceria entre a empresa e a CASACOR, no qual se recria um bioma tropical no meio do percurso, com diversos bancos indígenas sobre tapetes que faziam as vezes de musgos e chão de floresta.
No entanto, o que realmente chama a atenção nesta edição são quatro espaços desenhados por equipes constituídas exclusiva ou parcialmente por mulheres negras, todas estreantes no evento. O primeiro desses espaços é o impressionante banheiro Mediterrâneo em mim de Hellen Pacheco. O porcelanato de Isabela Capeto do piso, que segue à meia parede, traz inspirações mediterrâneas, que costuram o norte da África ao sul da Europa, sob um mar de estrelas montado a partir de spots de diferentes alturas.
Na sequência, somos recebidos pelo potente espaço Motirõ, de Ester Carro. Do tupi-guarani “colher e construir junto”, motirõ sintetiza suas forças motrizes: ancestralidade, sustentabilidade e engajamento social. Há 10 anos liderando o projeto Fazendinhando, no Jardim Colombo, a arquiteta traz para a CASACOR o reconhecimento do trabalho coletivo da autoconstrução das favelas. Para tanto, trabalhou com a capacitação de mão de obra feminina, já que os revestimentos e pinturas foram executados por mulheres de sua comunidade. Em suas palavras, é seu desejo “mostrar que essas mãos existem” e que “a arquitetura é processo, construída por muitas mãos.” Além disso, o espaço é educativo, pois é a partir dele que Carro pretende desenvolver uma cartilha com orientações sobre como construir em espaços pequenos na favela.
Ao mesmo tempo que olha para o futuro das casas em situações de vulnerabilidade, Ester Carro também buscou resgatar a dimensão ancestral do espaço. Emocionada ao descobrir que seu bisavô e tataravô são indígenas, ela decide trazer para o mobiliário as raízes de nossa cultura. Com grafismos de Waxamani Mehinako, os armários e gabinetes de Motirõ se destacam, fazendo com que “a cultura indígena brilhe no ambiente”. Feito em pinus, madeira de fácil acesso e manuseio, esse mobiliário é complementado por revestimento reciclado da Papelão Joia na entrada da sala, e o uso racional de um mesmo porcelanato no piso, bancada e frontão da cozinha. Mas o elemento que simboliza a preocupação ambiental da autora é a cisterna. Ao trazer um elemento tão prosaico da construção civil para dentro da CASACOR, Carro chama a atenção para a possibilidade da utilização de tecnologias simples, mas capazes de gerar uma economia de até 50% da água consumida por uma família.
O resto do espaço é resolvido com o uso inovador de móveis tradicionais, como o sofá em “L” no centro da casa, definindo closet, dormitório, cozinha e sala sem a necessidade de construção de paredes. Ou então o beliche de cama de casal + cama de solteiro, que ao separar as crianças dos adultos, gera uma saudável segregação na intimidade da família. Por fim, nos despedimos do espaço passando pela “fachada que alimenta”, assim batizada por sua autora. Uma horta vertical instalada em uma manta de cortina blackout reutilizada, que reinterpreta a dimensão rural das favelas, dialogando com a questão urgente da segurança alimentar. Podendo ser instalada em qualquer superfície, essa horta otimiza o espaço das casas e vielas.
Assim como Ester Carro, Stephanie Ribeiro, José Carrari Filho e Gabriel Ramires lançam mão da língua tupi-guarani para batizar seu espaço, o Ku’ya, que significa “abrigo”. E é essa a primeira sensação que temos ao adentrar nesse estúdio uterino de luz e cores rebaixadas. Pensado a partir da persona de uma jovem artista, ele renuncia a portas e ângulos retos para nos deliciar com um contínuo de curvas e saletas, enriquecidas com obras de artes e design que dialogam de forma consistente entre si. Desde a Peseira de Alex Rocca, até as fotografias de Greta Sarfaty e o buffet Abrigo de Maria Fernanda Paes de Barros, o que encontramos aqui é uma verdadeira caverna habitada pela busca do belo.
Nas palavras de Stephanie, “o espaço é uma continuação do corpo, nas suas imperfeições e curvas”, o que nos convida a refletir em que medida nossa arquitetura tem buscado no corpo uma inspiração, ou apenas o tem conformado dentro de sua razão abstrata. A carne da casa, aqui exposta como máxima expressão do conforto onírico, também se mostra na relação do espaço com o fora. As duas aberturas são uma delicada negociação com o edifício modernista do Conjunto Nacional. A primeira, na sala de pintura da artista, é um estômato que faz lembrar as fendas do SESC Pompeia, entretelado com palhinha, gerando uma luz gentil e filtrada. Já no banheiro, o paisagismo de Flávia D'Urso cria um oásis verde que garante intimidade e vivacidade àquele espaço. Vale notar, por fim, que o Ku’ ya é uma espécie de espelho invertido da Casa Coral, projeto de Ricardo Abreu, já que se trata do loft de uma artista que se aposenta, um corpo envelhecido que se reencontra na maturidade da pele. Não por acaso, em ambos os espaços podemos ver tons musculares, bocas e aberturas que nos rememoram à primeira casa, o corpo da mãe.
Diferentemente desses espaços, Audrey Carolini e Thamires Mendes, do ARQTAB, juntamente com Maycon Fogliene assinam A Casa do Ser, pensada para toda e qualquer pessoa. Ou, nas palavras de Thamires, “a casa onde qualquer corpo é bem-vindo”. Tema estreante na CASACOR, o desenho universal já aparecia na preocupação do evento com a acessibilidade, mas agora ganha forma própria. Através da aplicação de tecnologia assistiva, essa casa se inspira nas tradicionais casas paulistanas, aliando conforto e inteligência nesta que poderia ser qualquer casa da cidade, agora adaptada a qualquer corpo.
Cortinas, luz e aparelhos eletrônicos são acionados por comando de voz. Texturas e cores são aplicadas à excelência para atender a pessoas com baixa visão. Uma engenhosa televisão deslizante atende a todos os ambientes, e informações em braile são encontradas em locais estratégicos. O tato, o toque e o contraste passam a ser usados na sua função de orientar o corpo, permitindo que este se localize sempre, constituindo assim um lugar de conexão.
Seja através de objetos de memória, da terra na sola do sapato, da técnica a serviço do bem viver, ou mesmo da vontade de fazer ouvir todos os corpos que participam da construção de nossos espaços de morada, esta edição da CASACOR é um passeio irrecusável por nós mesmos.
SERVIÇO
Onde: Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, 2073.
Quando: de 30 de maio a 06 de agosto de 2023.
Horário de funcionamento: Terça a Sábado das 12h às 22h, Domingos e Feriados das 11h às 21h
Para mais informações, veja o site oficial da CASACOR.